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domingo, 21 de agosto de 2011

As Sangrias do Viso

Aviso: o conteúdo deste post pode conter descrições susceptíveis de ferir a sensibilidade de alguns leitores.

Existe em Setúbal uma rua que dá pelo nome de Rua da Batalha do Viso, mas poucos conhecem as razões e o desfecho de tal acontecimento histórico. Trata-se de um combate que faz parte da guerra civil que ficou conhecida pelo nome de Patuleia. O confronto deu-se a 1 de Maio de 1847 entre as tropas apoiantes da rainha D. Maria II, comandadas pelo conde de Vinhais e a facção da Junta Insurreccional do Porto, liderada pelo visconde Sá da Bandeira.

Há dias encontrei nas prateleiras virtuais da Google Books um curioso relato do tratamento dado aos feridos desse confronto às portas da ainda vila de Setúbal, na obra "Cirurgia e medicina, clinica positiva", publicada em 1853 e da autoria de Manoel Joze da Rocha, cirurgião pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa - a antecessora da actual Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. [A propósito desta escola vale a pena ler as "Anotações sobre a história do ensino da Medicina em Lisboa, desde a criação da Universidade Portuguesa até 1911 – 1ª Parte", de J. MARTINS E SILVA]

O cirurgião militar estava habituado a tratar um pouco de tudo o que estivesse relacionado com escaramuças bélicas: ferimentos de balas, estilhaços e até de espada. Após o relato de várias aventuras e desventuras médicas resultantes da época, começa o médico a relatar sucintamente a Batalha do Alto do Viso: "Em Montemor soubemos que o general Sá da Bandeira vinha tomar o commando desta força e que trasia uma brigada de gente mais regular. Estas três columnas reunidas formavam uma massa de 5.000 mil e tantos combatentes acampados na deliciosa Villa de Setubal que foi para nós outra Cápua, por quanto nem o General hia procurar o inimigo nem o inimigo nos procurava a nós [o Sá da Bandeira chegou a Setúbal a 16 de Abril, onde se reuniu com as forças do conde Melo] mais de vinte dias até que no primeiro de Maio fômos bater o inimigo num reconhecimento a que se deu o nome de Batalha do Alto do Viso". O embate foi sangrento: as forças de Sá de Bandeira terão perdido 500 homens. Conta o cirurgião que as colunas de Sá de Bandeira foram varridas por "metralha a tiro de pistola". Do outro lado, das forças do conde de Vinhais, leais à rainha, o balanço foi, nas contas do cirurgião, de "cento e quatro feridos de todas as armas, dezoito prisioneiros e setenta mortos".

Consta que o vaso de guerra britânico HMS Polyphemus estaria pelas águas do Sado (conferir aqui: "29 April – 1 May [1847] Rough copy diary entry in Colonel Wylde's hand concerning his journey to Setubal onboard HMS Polyhemus to meet Sa da Bandeira and his acceptance of British mediation. Also concerning insurgent activity and his trip to Vinhae's headquarters to
propose a ceasefire". E conferir aqui também.). Facto que aliado ao desaire do Viso terá convencido Sá da Bandeira a assinar um armistício (cessar-fogo) sob mediação britânica. Eis o papel de Setúbal na Patuleia.

De acordo com o relato do cirurgião, os feridos terão sido levados para o Palácio do Sapal (actual edifício do Governo Civil na actual Avenida Luisa Todi) onde se estabeleceu um "hospital de sangue". Entre os feridos mais graves contava-se um soldado que "ferido de bala" na testa. O médico não teve dúvidas em aplicar um tratamento comum na época: a sangria ("Mandei sangrar o doente, (...) no segundo dia appareceu em estado comatoso(...). Ao quarto dia, o doente tinha menos febre, (...) pede para comer e dá-se-lhe uma colher de sopa d'arroz no caldo, e assim continúa até ao septimo dia, em que fallece sem convulsões"). Outro combatente, desta feita de cavalaria, foi "ferido com duas cutiladas na cabeça,
e levou uma estocada no pescoço que o atravessou de parte a parte passando a ponta da espada pela parte posterior dos musculos da laringe". Apesar da gravidade dos ferimentos, nenhuma parte vital foi afectada e "o doente voltou ao serviço". O cirurgião dá conta de um terceiro ferido, um tenente trespassado por uma bala, e dele afirma que "não havia dúvida que a bala tivesse interessado o pulmão e a pleura, pois o ar sahia por ambas as feridas".
Este paciente acabou por ser "sangrado largamente, três vezes nas primeiras 24 horas". Acabou por recuperar e antes do fim do mês já fazia serviço no seu batalhão. Nestes tempos, os cirurgiões ainda acreditavam que a sangria ou sangramento dos doentes permitia equilibrar os seus "humores" ou "temperamentos" e assim alcançar a cura. Hoje sabe-se que os efeitos da sangria são nefastos, salvo raras excepções medicamente controladas.

O nosso cirurgião-sangrador ainda teve trabalho em Setúbal: controlar uma epidemia de sarna entre os soldados e o tratar de doenças sexuais nos homens e nas prostitutas ("julguei conveniente curar os homens e tractar e fiscalizar as meretrizes"). Emigrou para Espanha "até deixar socegar o fogo das paixões revoltosas" onde continuou a tratar pacientes e só voltou a Portugal no final de 1847. Fica este pequeno apontamento sobre a batalha do Viso, sobre a qual haveria certamente mais para contar.

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